sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Em quem você votará para prefeito de São Paulo? (Enquete)

Seguindo determinações do TRE. Não se trata de uma pesquisa eleitoral, prevista no artigo 33 da lei nº 9.504/97, mas sim de um mero levantamento de opiniões, sem controle de amostragem, o qual não utiliza método científico para sua realização, contando com a participação espontânea do leitor deste blog.


Em quem você votaria para prefeito de São Paulo?
Ana Luiza - PSTU
Anaí Caproni - PCO
Carlos Giannazi - PSOL
Celso Russomanno - PRB
Eymael - PSDC
Fernando Haddad - PT
Gabriel Chalita - PMDB
José Serra - PSDB
Levy Fidelix - PRTB
Miguel - PPL
Paulinho da Força - PDT
Soninha - PPS
Branco ou Nulo

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Os Jasmins (Humberto de Campos)



- Que linda flor, almirante; e que perfume!

Foi assim que a linda viúva Dagmar Antunes recebeu, num arrulho gracioso, a florzinha alva, a mimosa estrelinha de neve, que o almirante Ribas destacara, gentil, da botoeira do seu "smoking" impecável.

- Dona Dagmar não conhece, porventura, a história desta flor? - perguntou, risonho, o velho marinheiro, tomando lugar ao lado da moça, no mesmo canapé.

E como a encantadora senhora lhe respondesse com o enigma de um sorriso, o almirante começou, falando-lhe quase ao ouvido:

- Para a primeira mulher, como a senhora sabe, a expulsão do Paraíso teve a importância de uma verdadeira calamidade. A maldição de Jeová tombava, principalmente, sobre ela, sobre o seu destino, sobre a sua felicidade na terra. Era ela que ia sofrer, dali em diante, as dores da multiplicação da espécie. Era sobre ela que iam recair as penas, os trabalhos, os cuidados da vida doméstica. Era sobre ela, em suma, que iam pesar as preocupações do vestuário, da mudança quotidiana da folha de parreira. E, por isso, era com o coração aos pedaços que ela ia deixar, para sempre, aquele abençoado domínio do Senhor.

Nesse ponto, fez pausa, olhou os dentes miudinhos da moça, que continuava a sorrir, e acrescentou, bordando a fabula:

- Expulsos do Éden, Adão e Eva baixaram a cabeça, e partiram, tristes, humildes, abatidos, para a horrível solidão do degredo. Assim, porém, que ultrapassaram os limites do grande jardim das delicias, nossa primeira mãe não pôde mais. Os lindos olhos umedeceram-se-lhe, como violetas tocadas de orvalho. E à medida que ela ia andando, iam as lágrimas caindo uma a uma, dos seus grandes olhos, assinalando, na areia, como pérolas do mesmo colar, as curvas do seu caminho. No dia seguinte, porém, ao amanhecer, o rosto da primeira mulher iluminou-se de uma divina felicidade: marcando os seus passos no Deserto, a areia aparecia semeada de florinhas em forma de estrela, alvas como a inocência e cheirosas como o pecado!

Virou-se mais para a moça, e explicou:

- Foi assim, das lágrimas da mulher, que nasceram os jasmins!

E olhando-lhe nos olhos, com a voz trêmula:

- E foi nas pétalas dos jasmins, D. Dagmar, que Deus talhou os seus dentes!

domingo, 23 de setembro de 2012

Poemas São como Vitrais Pintados (Johann Wolfgang von Goethe)


Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? — Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas — vamos! — vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!

Nostalgia do Presente (Jorge Luis Borges)


Naquele preciso momento o homem disse:
«O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruto.»
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.

A luta com o monstro (Victor Hugo)


Depois do grande esforço, Gilliatt precisava recuperar as forças e começou a procurar alimento. Um grande caranguejo, assustado com a presença dele, tinha pulado na água, mas não mergulhou tanto que Gilliatt não o visse. Fugia, e Gilliatt correu atrás dele. De repente, não viu mais nada. O caranguejo metera‑se por algum buraco debaixo do rochedo.

Gilliatt atracou‑se aos relevos da pedra e esticou o pescoço, para tentar ver alguma coisa. Encontrou ali uma anfratuosidade que era mais que uma fenda, era um pórtico. O mar entrava por baixo desse pórtico, mas não era profundo. Via‑se o fundo coberto de pedrinhas, que eram esverdeadas e revestidas de filamentos, indicando que nunca estavam a seco. O caranguejo devia ter‑se refugiado aí.

Gilliatt pôs a faca entre os dentes, desceu do alto da rocha e saltou na água, que o cobriu quase até os ombros. Meteu‑se pelo pórtico, e penetrou num cor­redor com um esboço de abóbada ogival por cima. As paredes eram polidas e lisas. Já não via o caranguejo. Tomara pé, caminhava, e diminuía‑se a luz. Começou a não ver coisa alguma.

Depois de quinze passos, cessou a abóbada e ele se achou fora do corredor. Havia mais espaço e mais luz. Os olhos iam‑se acostumando ao lugar e viam cada vez melhor. 

Descobriu ao alcance da mão uma fenda horizontal no granito. Provavelmente estava ali o caranguejo. Meteu a mão o mais que pôde, e procurou às apalpadelas naquele buraco de trevas. De repente, sentiu que lhe agarravam o braço. O que ele experimentou, nesse momento, foi o horror indescritível.

Uma coisa que era delgada, áspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na sombra à roda de seu braço nu, e subia‑lhe para o peito. Era a pressão de uma correia, e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma espécie de espiral tinha‑lhe invadido o punho e o cotovelo e tocava‑lhe o ombro. A ponta metia‑se‑lhe na axila.

Gilliatt atirou‑se para trás, e mal pôde fazê‑lo. Estava como que pregado. Com a mão esquerda que ficava livre, pegou na faca que tinha entre os dentes. Com essa mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado para retirar o braço direito. Só conseguiu inquietar a ligadura, que se apertou mais. Era flexível como o couro, sólida como o aço, fria como a noite.

Outra correia, estreita e pontuda, saiu do buraco da rocha. Era uma espécie de língua saindo de uma goela e lambendo medonhamente o corpo nu de Gilliatt. De repente, esticando-se desmedida e fina, aplicou-se à pele e enrolou-se no corpo. Ao mesmo tempo um sofrimento inaudito, sem comparação neste mundo, levantava-lhe os músculos. Gilliatt sentia que a pele se abria em muitos pontos, de modo horrível. Parecia-lhe que inúmeros lábios, pregados à carne, procuravam beber-lhe o sangue.

Terceira correia saiu fora do rochedo, apalpou Gilliatt e chicoteou‑lhe os lados como uma corda. Afinal fixou‑se como as outras.

A angústia, no paroxismo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante luz para que ele pudesse ver as formas repelentes aplicadas ao seu corpo.

Quarta ligadura, esta rápida como uma flecha, saltou‑lhe em roda do ventre e aí se enrolou.

Era impossível cortar ou arrancar aquelas correias viscosas, que lhe aderiam estreitamente ao corpo por muitíssimos pontos. Cada um desses pontos era um foco de terrível e estranha dor. Sentia como se fosse engolido ao mesmo tempo por uma porção de bocas pequeninas.

Quinta ligadura saltou-lhe ao tronco, sobrepôs‑se às outras e foi enroscar‑se na altura do diafragma. A compressão ajuntava‑se à ansiedade. Gilliatt mal podia respirar.

Aquelas ligaduras, pontudas na extremidade, alargavam-se como as lâminas de espada, da ponta para o punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo centro. Caminhavam e arrastavam‑se para Gilliatt. Ele sentia deslocarem‑se essas pressões obscuras que lhe pareciam bocas.

Bruscamente uma larga viscosidade redonda e chata saiu de dentro da rocha. Era o centro, e as cinco ligaduras prendiam‑se a ele como raios a um eixo. Do lado oposto daquele disco imundo, podia-se ver o começo de outros três tentáculos, presos no fundo do buraco. No meio dessa viscosidade havia dois olhos que olhavam para Gilliatt. Ele reconheceu naquilo um polvo.

Para acreditar no polvo, é preciso tê‑lo visto. Comparadas a ele, as velhas hidras fazem sorrir. Em certos momentos, parece que o elemento fugidio que flutua em nossos pesadelos encontra paralelo na realidade, e dessas obscuras ficções do sonho surgem criaturas. O ignoto dispõe do prodígio e serve-se dele para compor o monstro. Orfeu, Homero e Hesíodo só puderam fazer a quimera, Deus fez o polvo.

Quando Deus quer, excede no execrável. Admitidos todos os ideais, se o terror é um fim, o polvo é uma obra-prima.

Mas onde reside o perigo do polvo? A baleia é enorme, o polvo é pequeno; o hipopótamo tem uma couraça, o polvo é nu; a jararaca tem um silvo, o polvo é mudo; o rinoceronte tem um chifre, o polvo não tem chifre; o escorpião tem um dardo, o polvo não tem dardo; o tubarão tem barbatanas cortantes, o polvo não tem barbatanas; o morcego tem asas com unhas, o polvo não tem asas; o porco‑espinho tem espinhos, o polvo não tem espinhos; o espadarte tem um gládio, o polvo não tem gládio; o torpedo tem um raio, o polvo não tem raio; o sapo tem um vírus, o polvo não tem vírus; a víbora tem veneno, o polvo não tem veneno; o leão tem garras, o polvo não tem garras; o gipaeto tem um bico, o polvo não tem bico; o crocodilo tem uma goela, o polvo nem tem dentes.

O polvo não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem barbatanas, nem asas, nem espinhos, nem espada, nem descarga elétrica, nem vírus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. Mas o polvo é, de todos os animais, o mais formidavelmente armado.
O que é o polvo? É a ventosa.
Nos escolhos em pleno mar, onde a água mostra e esconde todos os seus esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconheci­das onde abundam vegetações, crustáceos e conchas, debaixo dos profundos pórticos do oceano, o nadador que se aventura, arrastado pela beleza do lugar, corre o risco de um encontro. Se tiveres esse encontro, não sejas curioso: foge. Entra‑se fascinado, sai‑se apavorado.
Nadando, o polvo conserva‑se, por assim dizer, na bainha. Nada com as antenas fechadas. Imagine um punho costurado dentro de uma manga. Esse punho, que é a cabeça, impele o líquido e avança com um vago movimento ondulatório. Os dois olhos, embora grandes, são pouco distintos por serem da cor da água. Uma forma cinzenta oscila na água, como um trapo. A pouco e pouco o trapo caminha para a vítima, sob a forma de um guarda-chuva fechado sem o tecido. De re­pente abre‑se, e oito raios projetam-se bruscamente em torno de um saco que tem dois olhos. Esses raios vivem, flamejam ondeando. É uma espécie de roda que se desenrola, com 4 ou 5 pés de diâmetro.

Ati­ra‑se ao infeliz. A hidra arpoa o homem, aplica‑se à sua presa, cobre‑a, envolve‑a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é térrea. Nada pode imitar esse inexplicável matiz de poeira, como se fosse um animal feito de cinza e morando na água. É aracnídeo pela forma, é camaleão pelo colorido. Irritado, torna-se roxo. Coisa horrível, é flácido. Os seus nós garroteiam, o seu contato paralisa. Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a moléstia feita monstruosidade.

Não se pode arrancá‑lo, pois agarra‑se estreitamente à sua presa. Como? Pelo vácuo. As oito antenas, largas na origem, vão se estreitando e terminam como agulhas. Debaixo de cada uma delas alongam‑se paralelamente duas filas de pústulas decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fileira tem 25. Há cinqüenta pústulas em cada antena, e todo o animal tem quatrocentas.

Essas pústulas são ventosas. São cartilagens cilíndricas e lívidas. Na grande espécie, vão diminuindo de diâmetro, desde uma moeda de 5 francos até a grossura de uma lentilha. Esses pedaços de tubos saem e penetram na vítima. Podem penetrar no corpo de um homem mais de uma polegada. É um aparelho de sucção com a delicadeza de um teclado. Levanta‑se, esconde‑se, obedece à menor intenção do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam a contratilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. É um dragão e é uma sensitiva.

Esse monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama cefalópode, e que a legenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam‑no devil‑fish, o peixe‑diabo. Chamam‑no também blood‑sucker, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam‑no pieuvre.

Quando espreita a caça, o polvo esquiva‑se, diminui‑se, condensa-se, reduz‑se à mais simples expressão. Confunde‑se com a penumbra. Assemelha‑se a tudo, exceto a coisa viva. O polvo é o hipócrita, não se repara nele. Repentinamente, abre-se.

O que pode existir de mais medonho do que uma viscosidade com uma vontade? O viscoso cumulado de ódio?

É no mais belo azul da água límpida que surge essa hedionda estrela voraz do mar. O que é terrível é que não se o sente de longe. Quando a gente o vê, já está agarrado.

O polvo anda e também nada. É um tanto peixe e um tanto réptil. Arrasta-se no fundo do mar. Utiliza as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.

Não tem osso, nem sangue e nem carne, é flácido. Não tem nada dentro, é uma pele. Pode-se virar-lhe os tentáculos de dentro para fora, como dedos de uma luva. Tem um só orifício no centro dos oito raios. É frio todo ele.

Repelente bicho. É um contato hediondo essa gelatina animada que envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga sem matar, e que se puxa sem desgarrar, espécie de criatura resvaladiça e tenaz, que escorrega entre os dedos. Nada iguala a súbita aparição do polvo, medusa servida por oito serpentes. Não há aperto igual ao do cefalópode.

É uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes, uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível, mas menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na carne, a ventosa é o homem sugado pelo bicho. Incham-se os músculos, torcem-se as fibras, rebenta a pele debaixo de um peso imundo, jorra o sangue e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames. A hidra incorpora-se ao homem, o homem amalgama-se à hidra. Ficam sendo um só. O tigre pode apenas devorar, já o polvo (horror!) aspira, puxa o homem a si e em si.

Atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível saco, que é um monstro. Além do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que é ser bebido vivo.

Aquele monstro era o habitante daquela grota. Era o medonho gênio do lugar, estava em sua casa. Quando Gilliatt, entrando pela caverna em busca do caranguejo, viu o buraco onde pensou que ele se tivesse refugiado, o polvo estava ali à espreita. Gilliatt metera o braço no buraco, e o polvo o agarrou. Estava preso, era a mosca daquela aranha.

Gilliatt tinha água até a cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e resvaladiços, com o braço direito atado pelas correias do polvo e o tronco do corpo quase desaparecendo debaixo das dobras e cruzamentos daquela atadura horrível.

Dos oito tentáculos do polvo, três aderiam à rocha, cinco aderiam a Gilliatt. Deste modo, agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro, encadeavam-no ao rochedo. Gilliatt tinha sobre o seu corpo 250 chupadores. Estava apertado dentro de uma grande mão, com dedos elásticos e do comprimento de um metro, cheios de pústulas vivas que lhe fuçavam na carne.

Não se pode arrancar o polvo. Quem o tenta, fica mais fortemente amarrado. Ele aperta-se mais, o seu esforço cresce na razão do esforço da vítima. Quanto maior é a sacudidela, maior é a constrição.

Gilliatt só tinha um recurso: a faca. Tinha a mão esquerda livre, e nela a faca aberta. Mas não se cortam as antenas do polvo; é um couro impossível de cortar, pois resvala debaixo da lâmina. E tal é a forma de contato, que um corte nessas correias atingiria a própria carne.

O polvo é formidável, mas há uma maneira de vencê-lo. Os pescadores o sabem, os ouriços-do-mar também o sabem. Ele só é vulnerável na cabeça, e Gilliatt não o ignorava.

Há um momento para vencer o polvo, como o há para o touro. É o instante em que o touro curva o pescoço, é o instante em que o polvo estica a cabeça. Instante rápido. Quem o deixa escapar, está perdido.
O polvo procura apavorar a presa. Agarra e espera o mais que pode. Gilliatt tinha a faca na mão. As sucções aumentavam. Ele olhava para o polvo, o polvo olhava para ele.

De repente o bicho desprendeu do rochedo a sexta antena. Atirando-a sobre Gilliatt, procurou agarrar-lhe o braço esquerdo. Ao mesmo tempo esticou vivamente a cabeça. Mais um segundo, e a sua boca aplicar-se-ia sobre o peito de Gilliatt. Sangrando no corpo e preso pelos braços, ele estaria morto.

Mas Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava. Evitou a antena. No momento em que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada abateu-se sobre o bicho. Houve duas convulsões em sentido inverso – a do polvo e a de Gilliatt. Foi luta de dois relâmpagos.

Gilliatt mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata. Com um movimento giratório semelhante à torção de uma chicotada, fazendo um círculo à roda dos dois olhos, arrancou a cabeça como quem arranca um dente.

Estava acabado. O bicho caiu. Parecia uma roupa que se desprende. Destruída a bomba aspirante, desfez-se o vácuo. As quatrocentas ventosas largaram ao mesmo tempo o rochedo e o homem. Aquele andrajo foi ao fundo da água.

Gilliatt, ofegante da luta, pôde ver a seus pés, em cima das pedras do fundo, dois montes gelatinosos e informes – a cabeça de um lado, o resto de outro. Dizemos resto, porque não se poderia dizer corpo.
O animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca.


DO LIVRO "OS TRABALHADORES DO MAR"

Pequena Digressão (Voltaire)

Logo no começo da fundação dos Quinze-Vingts, sabe-se que os asilados eram todos iguais e seus assuntos se decidiam por votação. Distinguiam perfeitamente, pelo tato, a moeda de cobre da de prata; nenhum deles tomou jamais vinho de Brie por vinho de Borgonha. Seu olfato era mais fino que o de seus patrícios que tinham dois olhos. Aprofundaram-se perfeitamente nos quatro sentidos. Isto é, ficaram sabendo acerca deles tudo quanto é possível; e viveram tranqüilos e felizes na medida em que os cegos o podem ser. Infelizmente, um de seus professores julgou possuir noções claras sobre o sentido da vista; fez-se ouvir, intrigou, granjeou partidários; reconheceram-no afinal como chefe da comunidade. Pôs-se a julgar soberanamente em matéria de cores, e aí é que foi a perdição.

Esse primeiro ditador dos Quinze-Vingts formou primeiro um pequeno conselho, com o qual se tornou depositário de todas as esmolas. Por esse motivo, ninguém se atreveu a resistir-lhe. Decidiu ele que todas as roupas do Quinze-Vingts eram brancas; os cegos acreditaram; não falavam senão de seus belos trajes brancos, embora não houvesse entre eles um único dessa cor. Como todo o mundo começasse então a zombar deles, foram queixar-se ao ditador, que os recebeu muito mal; tratou-os de inovadores, de espíritos fortes, de rebeldes, que se deixavam seduzir pelas opiniões errôneas daqueles que tinham olhos e ousavam duvidar da infalibilidade de seu senhor. Dessa querela, formaram-se dois partidos.

O ditador, para os apaziguar, baixou um decreto segundo o qual todas as suas vestes eram vermelhas. Não havia uma única veste vermelha entre os Quinze-Vingts. Riram-se deles mais do que nunca. Novas queixas da comunidade. O ditador enfureceu-se, os outros cegos também. Disputaram longamente, e só se restabeleceu a concórdia quando foi permitido, a todos os Quinze-Vingts, suspenderem o juízo sobre a cor de sua roupa.

Um surdo, ao ler esta pequena história, confessou que os cegos tinham feito muito mal em querer julgar a respeito de cores, mas permaneceu firme na opinião de que só aos surdos compete falar de música.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Israel Kamakawiwo'ole - Over The Rainbow



Pena que este talento tenha nos deixado tão jovem. Israel Ka'ano'i Kamakawiwo'ole nasceu no dia 20 de maio de 1959 em Honolulu, cidade onde viveu até vir a falecer no dia 26 de junho de 1997. Um talento tão grande não poderia partir tão cedo, partiu com apenas 38 anos de idade. Um de seus álbuns mais famosos foi Facing Future, de 1993, trabalho que o lançou para a fama mundial, onde consta o tema "Over the Rainbow/What a Wonderful World", uma versão que mistura dois clássicos da música americana. "Somewehere Over the Rainbow", do filme The Wizard of Oz (br: O Mágico de Oz / O Feiticeiro de Oz), e "What a Wonderful World", esta última conhecida mundialmente na voz inigualável de Louis Armstrong. O resultado? Bem, o resultado é um primor.

Sem mais comentários. Deixo o vídeo para que você, leitor, possa apreciar.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

A cidade dos resmungos (William J. Bennett)



Era uma vez um lugar chamado Cidade dos Resmungos, onde todos resmungavam, resmungavam, resmungavam. No verão, resmungavam que estava muito quente. No inverno, que estava muito frio. Quando chovia, as crianças choramingavam porque não podiam sair. Quando fazia sol, reclamavam que não tinham o que fazer. Os vizinhos queixavam-se uns dos outros, os pais queixavam-se dos filhos, os irmãos das irmãs.

Todos tinham um problema, e todos reclamavam que alguém deveria fazer alguma coisa.
Um dia chegou à cidade um mascate carregando um enorme cesto às costas. Ao perceber toda aquela inquietação e choradeira, pôs o cesto no chão e gritou:

- Ó cidadãos deste belo lugar! Os campos estão abarrotados de trigo, os pomares carregados de frutas. As cordilheiras estão cobertas de florestas espessas, e os vales banhados por rios profundos. Jamais vi um lugar abençoado por tantas conveniências e tamanha abundância. Por que tanta insatisfação? Aproximem-se, e eu lhes mostrarei o caminho para a felicidade.

Ora, a camisa do mascate estava rasgada e puída. Havia remendos nas calças e buracos nos sapatos. As pessoas riram que alguém como ele pudesse mostrar-lhes como ser feliz. Mas enquanto riam, ele puxou uma corda comprida do cesto e a esticou entre os dois postes na praça da cidade.

Então segurando o cesto diante de si, gritou:

- Povo desta cidade! Aqueles que estiverem insatisfeitos escrevam seus problemas num pedaço de papel e ponham dentro deste cesto. Trocarei seus problemas por felicidade!
A multidão se aglomerou ao seu redor. Ninguém hesitou diante da chance de se livrar dos problemas. Todo homem, mulher e criança da vila rabiscou sua queixa num pedaço de papel e jogou no cesto.

Eles observaram o mascate pegar cada problema e pendurá-lo na corda. Quando ele terminou, havia problemas tremulando em cada polegada da corda, de um extremo a outro. Então ele disse:

Agora cada um de vocês deve retirar desta linha mágica o menor problema que puder encontrar.

Todos correram para examinar os problemas. Procuraram, manusearam os pedaços de papel e ponderaram, cada qual tentando escolher o menor problema. Depois de algum tempo a corda estava vazia.

Eis que cada um segurava o mesmíssimo problema que havia colocado no cesto. Cada pessoa havia escolhido o seu próprio problema, julgando ser ele o menor da corda.
Daí por diante, o povo daquela cidade deixou de resmungar o tempo todo. E sempre que alguém sentia o desejo de resmungar ou reclamar, pensava no mascate e na sua corda mágica.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Meios e fins (Texto de Autor Desconhecido)



Um homem de negócios, americano, no ancoradouro de uma aldeia da costa mexicana, observou um pequeno barco de pesca que atracava naquele momento, trazendo um único pescador. No barco, vários grandes atuns de barbatana amarela. O americano deu parabéns ao pescador pela qualidade dos peixes e lhe perguntou quanto tempo levara para pescá-los.
- "Pouco tempo" - Respondeu o mexicano.
Em seguida, o americano perguntou por que ele não permanecia no mar mais tempo, o que lhe teria permitido uma pesca mais abundante.
O mexicano respondeu que tinha o bastante para atender as necessidades imediatas de sua família.
O americano voltou à carga:

- "Mas o que é que você faz com o resto de seu tempo?"

O mexicano respondeu:
- "Durmo até tarde, pesco um pouco, brinco com os meus filhos, tiro a sesta com minha mulher, Maria, vou todas as noites à aldeia, bebo um pouco de vinho e toco violão com meus amigos. Levo uma vida cheia e ocupada, senhor".

O americano assumiu um debochado ar de pouco caso e disse:

- "Eu sou formado em Administração de empresas em Harvard, perito em 'Qualidade' e poderia ajudá-lo. Você deveria passar mais tempo pescando e, com o lucro, comprar um barco maior. Com a renda produzida pelo novo barco, poderia comprar vários outros. No fim, teria uma frota de barcos pesqueiros. Em vez de vender pescado a um intermediário, venderia diretamente à uma indústria processadora e, no fim, poderia ter sua própria indústria. Poderia controlar o produto, o processamento e a distribuição. Precisaria deixar esta pequena aldeia costeira de pescadores e mudar-se para a Cidade do México, em seguida para Los Angeles e, finalmente, para Nova York, de onde dirigiria sua empresa em expansão".

- "Mas, senhor, quanto tempo isso levaria?" - Perguntou o pescador, com os olhos arregalados.

- "15 ou 20 anos" - Respondeu triunfante o americano.

- "E depois, senhor?"

O americano riu, e disse que essa seria a melhor parte.
- "Quando chegasse a ocasião certa, você poderia abrir o capital de sua empresa ao público e ficar muito, muito rico. Ganharia milhões".
- "Milhões, senhor? E depois?"

- "Depois..." - Explicou o americano - "...Você se aposentaria... Mudaria para uma pequena aldeia costeira, onde dormiria até tarde, pescaria um pouco, brincaria com os seus netos, tiraria a sesta com a sua esposa, iria à aldeia todas as noites, onde poderia tomar vinho e tocar violão com os amigos..."

- "Pois é, senhor... É exatamente assim que eu vivo!" - Concluiu, sorrindo, o pescador...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Woo Sing e o Espelho (William J. Bennet)



Um dia, o pai de Woo Sing chegou em casa com um espelho trazido da cidade grande.

Woo Sing nunca vira um espelho na vida. Dependuraram-no na sala enquanto ele estava brincando lá fora; quando voltou, não compreendeu o que era aquilo, pensando estar na presença de outro menino.

Ficou muito alegre, achando que o menino viera brincar com ele.

Ele falou muito amigavelmente com o desconhecido, mas não teve resposta.

Riu e acenou para o menino no vidro, que fazia a mesma coisa, exatamente da mesma maneira.

Então, Woo Sing pensou: "Vou chegar mais perto. Pode ser que ele não esteja me escutando." Mas quando começou a andar, o outro menino logo o imitou.

Woo Sing estacou e ficou pensando nesse estranho comportamento. E disse para si mesmo:

"Esse menino está zombando de mim; faz tudo o que eu faço!"

E quanto mais pensava, mais zangado ficava. E logo reparou que o menino estava zangado também.

Isso acabou de exasperar Woo Sing! Deu um tapa no menino, mas só conseguiu machucar a mão, e foi chorando até seu pai. Este lhe disse:

- O menino que você viu era a sua própria imagem. Isso deve ensinar você uma importante lição, meu filho. Tente não perder a cabeça com as outras pessoas. Você bateu no menino no vidro e só conseguiu machucar a si mesmo.

"E lembre-se: na vida real, quando você agride sem motivo, o mais magoado é você mesmo."

domingo, 16 de setembro de 2012

A Águia, o Corvo e o Pastor (Esopo)



Lançando-se do ar, uma águia arrebatou um cordeirinho.

O corvo, vendo aquilo, tratou de imitá-la, e se jogou sobre um carneiro mas, de forma tão desengonçada que acabou por se enredar na lã e, debatendo-se em vão com suas asas, não conseguiu se soltar. O pastor, vendo aquilo, recolheu o corvo e, cortando as pontas de suas asas, o levou a seus filhos.

Perguntaram seus filhos sobre que ave era aquela, e ele lhes disse:

- Para mim, apenas um corvo, mas ele acha que é uma águia.

Moral da história:
Põe teu esforço e dedicação no que realmente estás preparado, não no que não te corresponde.

sábado, 15 de setembro de 2012

Ligação profunda (Susana B. Wilson)



Minha mãe e eu temos uma ligação muito profunda devido a nossa misteriosa habilidade para nos comunicarmos silenciosamente uma com a outra.

Quatorze anos atrás, eu estava morando em Evanville, Indiana, a 1300 Km de distância de minha mãe, minha confidente e melhor amiga. Uma manhã, enquanto estava num estado silencioso de contemplação, senti subtamente a necessidade urgente de telefonar para a minha mãe e perguntar se estava tudo bem. A principio, hesitei. Já que minha mãe dava aulas para a quarta série primária, telefonar-lhe às 7:15 da manhã poderia interromper sua rotina e fazer com que se atrasasse para o trabalho. Mas algo me compeliu a ir em frente e telefonar. Conversamos durante três minutos e ela me assegurou que estava sã e salva.

Mas tarde naquele dia, o telefone tocou. Era mamãe, dizendo que meu telefonema matutino provavelmente lhe salvara a vida. Se ela tivesse saído de casa três minutos mais cedo, se veria envolvida num acidente interestadual que matará várias pessoas e ferira outras tantas.

Oito anos atrás descobri que estava grávida de meu primeiro filho. A data prevista para o nascimento era 15 de março. Eu disse ao médico que era cedo demais. A data teria de cair entre 29 de março e 3 de abril, pois era quando minha mãe tinha férias de Páscoa na escola, e é claro que eu a queria comigo. O médico ainda insistiu que a data prevista era em meados de março. Eu apenas sorri. Reid chegou dia 30 de março. Mamãe chegou no dia 31.

Seis anos atrás, eu estava grávida novamente. O médico falou que a data prevista era para final de março. Eu disse que teria que ser mais cedo dessa vez porque ? - Você adivinhou - as férias de mamãe eram do começo de março. Tanto o médico quanto eu sorrimos. Breanne chegou no dia 8 de março.

Dois anos e meio atrás, mamãe estava lutando contra o câncer. Com o tempo, ele perdeu a energia, o apetite, a habilidade de falar. Após um fim de semana com ela na Carolina do Norte, eu tinha que preparar para voar de volta para o Meio-Oeste. Ajoelhei-me ao lado da cama de mamãe e peguei a mão dela.

-Mamãe, se eu puder, você quer que eu volte ?

Seus olhos se arregalaram enquanto ela tentava concordar com a cabeça.
Dois dias depois, recebi um telefonema de meu padrasto. Minha mãe estava morrendo. Membros da família estavam reunidos para os ritos finais. Eles me colocaram no viva-voz para ouvir o serviço religioso.

Naquela noite, tentei ao máximo mandar meu adeus para a a minha mãe através dos kilômetros que nos separaram. Na manhã seguinte seguinte, porém o telefone tocou : mamãe ainda estava viva, mas estava em coma e esperava-se que morreria a qualquer minuto. Mas ela não morreu. Nem naquele dia, nem no dia seguinte. Nem no outro. Todas as manhãs eu recebia o mesmo telefonema: ela podia morrer a qualquer minuto. Mas não morria. E todos os dias minha dor e minha tristeza eram expostas.

Depois de quatro semanas, finalmente entendi: mamãe estava me esperando. Ela me comunicara que gostaria que eu voltasse, se pudesse. Eu não tinha podido antes, mas agora eu podia. Fiz as reservas imediatamente.

Por volta das 17 h daquela tarde, eu estava deitada na cama com os braços em volta dela. Ela ainda estava em coma, mas eu sussurrei :

-Estou aqui mamãe. Você já pode ir. Obrigada por esperar. Você já pode ir.
Ela morreu apenas algumas horas depois.

ACHO QUE QUANDO UMA LIGAÇÂO É PROFUNDA E PODEROSA, VIVE PARA SEMPRE EM ALGUM LUGAR MUITO ALÉM DAS PALAVRAS E È DE UMA BELEZA INDESCRITÍVEL. COM TODA A AGONIA DA MINHA PERDA, EU NÃO TROCARIA A BELEZA E O PODER DA MINHA LIGAÇÃO POR NADA."


























sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Dormir enquanto os ventos sopram



Alguns anos atrás, um fazendeiro possuía terras ao longo do litoral do Atlântico. Ele constantemente anunciava estar precisando de empregados. A maioria de pessoas estavam pouco dispostas a trabalhar em fazendas ao longo do Atlântico.
Temiam as horrorosas tempestades que variam aquela região, fazendo estragos nas construções e nas plantações.
Procurando por novos empregados, ele recebeu muitas recusas. Finalmente, um homem baixo e magro, de meia-idade, se aproximou do fazendeiro.

- Você é um bom lavrador? Perguntou o fazendeiro.
- Bem, eu posso dormir enquanto os ventos sopram.

Respondeu o pequeno homem.

Embora confuso com a resposta, o fazendeiro, desesperado por ajuda, o empregou. O pequeno homem trabalhou bem ao redor da fazenda, mantendo-se ocupado do alvorecer até o anoitecer e o fazendeiro estava satisfeito com o trabalho do homem.

Então, uma noite, o vento uivou ruidosamente. O fazendeiro pulou da cama, agarrou um lampião e correu até o alojamento dos empregados. Sacudiu o pequeno homem e gritou,

- Levanta! Uma tempestade está chegando! Amarre as coisas antes que sejam arrastadas!

O pequeno homem virou-se na cama e disse firmemente,

- Não senhor. Eu lhe falei, eu posso dormir enquanto os ventos sopram.

Enfurecido pela resposta, o fazendeiro estava tentado a despedí-lo imediatamente. Em vez disso, ele se apressou a sair e preparar o terreno para a tempestade. Do empregado, trataria depois.

Mas, para seu assombro, ele descobriu que todos os montes de feno tinham sido cobertos com lonas firmemente presas ao solo. As vacas estavam bem protegidas no celeiro, os frangos nos viveiros, e todas as portas muito bem travadas. As janelas bem fechadas e seguras. Tudo foi amarrado. Nada poderia
ser arrastado. O fazendeiro então entendeu o que seu empregado quis dizer, então retornou para sua cama para também dormir enquanto o vento soprava.

O que eu quero dizer com esta história, é que quando se está preparado espiritualmente, mentalmente e fisicamente - você não tem nada a temer.

Eu lhe pergunto: você pode dormir enquanto os vento sopram em sua vida?
Espero que você durma bem!




Texto extraído do livro “Histórias da Tradição Sufi”

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A arte de ser feliz (Cecília Meireles)



Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que as coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para vê-las assim."

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Pegadas na areia (Texto de Autor Desconhecido)



Uma noite eu tive um sonho. Sonhei que estava andando na praia com o Senhor e através do Céu passavam cenas de minha vida. Para cada cena que passava, percebi que eram deixados dois pares de pegadas na areia; um era o meu, e o outro, do Senhor.

Quando a última cena de minha vida passou diante de nós, olhei para trás, para as pegadas na areia, e notei que muitas vezes no caminho da minha vida havia apenas um par de pegadas na areia. Notei também que isso aconteceu nos momentos mais difíceis e angustiosos da minha vida. Isso aborreceu-me e então perguntei ao Senhor:

- Senhor, Tu me disseste que, uma vez que eu resolvi Te seguir, Tu andarias sempre comigo, em todo o caminho. Contudo, notei que durante as maiores atribulações do meu viver, havia apenas um par de pegadas na areia. Não compreendo porque nas horas em que eu mais necessitava de Ti, Tu me deixaste sozinho.

O Senhor me respondeu:

- Meu querido filho. Jamais te deixaria nas horas de prova e de sofrimento. Quando vistes na areia, só um par de pegadas, eram as minhas. Foi exactamente aí que eu te carreguei em meus braços.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Rabo do Macaco (Monteiro Lobato)



Era um macaco que resolveu sair pelo mundo a fazer negócios. Pensou, pensou e foi colocar-se numa estrada, por onde vinha vindo, lá longe, um carro de boi. Atravessou a cauda na estrada e ficou esperando. Quando o carro chegou e o carreiro viu aquele rabo atravessado, deteve-se e disse:

- Macaco, tire o rabo da estrada, senão passo por cima!

- Não tiro! – respondeu o macaco – e o carreiro passou e a roda cortou o rabo do macaco.

O bichinho fez um barulho medonho.

- Eu quero o meu rabo, eu quero o meu rabo ou então uma faca!

Tanto atormentou o carreiro que este sacou da cintura a faca e disse:

- Tome lá, seu macaco dos quintos, mas pare com esse berreiro, que está me deixando zonzo.

O macaco lá se foi, muito contente da vida, com a sua faca de ponta na mão.

- Perdi meu rabo, ganhei uma faca! Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!

Seguiu caminho.

Logo adiante deu com um tio velho que estava fazendo balaios e cortava o cipó com os dentes.

- Olá amigo! – berrou o macaco – estou com dó de você, palavra! Tome esta faca de ponta.

O negro pegou a faca mas quando foi cortar o primeiro cipó a faca se partiu pelo meio.

O macaco botou a boca no mundo – eu quero, eu quero minha faca ou então um balaio!

O negro, tonto com aquela gritaria, acabou dando um balaio velho para aquela peste de macaco que, muito contente da vida, lá se foi cantarolando:

- Perdi meu rabo, ganhei uma faca; perdi minha faca, pilhei um balaio! Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!

Seguiu caminho.

Mais adiante encontrou uma mulher tirando pães do forno, que recolhia na saia.

- Ora, minha sinhá – disse o macaco, onde já se viu recolher pão no colo? Ponha-os neste balaio.

A mulher aceitou o balaio, mas quando começou a botar os pães dentro, o balaio furou.

O macaco pôs a boca no mundo.

- Eu quero, eu quero o meu balaio ou então me dê um pão.

Tanto gritou que a mulher, atordoada, deu-lhe um pão. E o macaco saiu a pular, cantarolando:

- Perdi meu rabo, ganhei uma faca; perdi minha faca, pilhei um balaio; perdi meu balaio, ganhei um pão. Tinglin, tinglin, vou agora para Angola!

E lá se foi muito contente da vida, comendo o pão.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Solstício de Inverno (André Maurois)



Muito longe, no céu, em Júpiter ou Saturno, ou melhor ainda em Sírius, dois astrônomos dirigiram seus telescópios para a Terra. Um deles é um velho siriata, sábio ilustre, e outro seu discípulo, ainda principiante. Neste instante é o último que, com o olho na ocular observa os astros.

O VELHO ASTRÔN0MO – Olha. Esse globo luminoso e pálido é a Terra. Ela acaba de atravessar o solstício de inverno e começa aquilo a que seus habitantes chamam um novo ano. Com uma ampliação maior, vou fazer com que os veja a correr pelas ruas de suas cidades. É quando, sem dúvida para se tranqüilizarem nessa época de noites longas e frias, eles se presenteiam reciprocamente e celebram festas noturnas… (Faz girar uma manivela.) 135, 136, 136, 5… isto deveria bastar… Dize-me o que estás vendo.

O DISCÍPULO – Que espetáculo admirável, mestre! Vejo imensos povoados, em agitação. Cobre-os um nevoeiro cinzento e nesse nevoeiro caminham alegremente homens e mulheres. Todos carregam embrulhos amarrados com barbantes de cor. Alguns apertam nos braços uma árvore coberta de geada. As mães levantam os filhos e mostram-lhes os brinquedos guardados em gaiolas de vidro. Os mais pobres compram um presente qualquer. Quem esperaria encontrar tanto amor em criaturas tão miseráveis?

O VELHO ASTRÔNOMO – Gosto dessa pequena raça; é corajosa. Há quinze mil anos terrestres que a venho observando. Ela procura construir uma felicidade durável. Todas as vezes que o edifício parece próximo de sua conclusão, desaba e sepulta milhões de terráqueos. Todas as vezes, sem desanimar, essas efêmeras recomeçam seus minúsculos esforços.

O DISCÍPULO – Lembro-me, mestre. Faz alguns dias, quando o senhor me dava suas primeiras lições, mostrou-me os terráqueos que procuravam destruir-se mutuamente. Era horroroso. Membros e cabeças arrebentavam. Gases mortíferos asfixiavam rebanhos inteiros. Seus povoados ardiam. Eu não podia compreender a fúria desses animálculos… Como é possível, mestre, que os mesmos seres revelem hoje tanta bondade? Pelo menos repararam suas ruínas?

O VELHO ASTRÔNOMO – Observa tu mesmo.

O DISCÍPULO, (deslocando suavemente a luneta) – A desordem ainda é grande. As casas estão reconstruídas, mas as trilhas das caravanas continuam desertas e os navios estão nos portos, inúteis. No oriente, à orla de um grande oceano, alguns insetos batalham. Por toda a parte estão paradas as fábricas, por toda a parte vejo milhares de seres desocupados que buscam penosamente com que se alimentar… Oh! mestre! Eis um espetáculo inacreditável. Nesse mesmo glóbulo de lama onde há terráqueos morrendo de fome, outros terráqueos acumulam e deixam apodrecer colheitas que parecem inúteis… Estarão loucos?

O VELHO ASTRÔNOMO – Realmente, esse é o mais louco de todos os planetas. Tal qual o estás vendo hoje, ou o vi, eu que o conheço bem, dez vezes, cem vezes, no decorrer de sua história. Após cada convulsão, são-lhe necessários quinze ou vinte anos terrestres para recuperar o equilíbrio. Depois ele goza trinta ou quarenta anos de paz, e recomeça.

O DISCÍPULO – Mas não compreenderá a vaidade desses passatempos cruéis?

O VELHO ASTRÔNOMO – Talvez comece a compreender. Eu desesperaria desses terráqueos se não verificasse que, desde que os observo, no fim de contas, progrediram um pouco. Vi-os fracos e miseráveis, refugiados no alto das florestas para escapar às feras, famintos. A pouco e pouco vi-os tornarem-se os senhores do planeta.

O DISCÍPULO (rindo) – Senhores de uma gota de lama…

O VELHO ASTRÔNOMO – Para eles ela é o mundo. Vencedores dos animais, investiram contra os elementos. Comparar sua ciência à nossa seria cômico. Apesar disso, para animálculos insignificantes, que vitória! E agora, têm a seu serviço tantas forças novas que se vêem em dificuldades com elas. Breve entrarão, como os siriatas, na era dos ócios inteligentes.

O DISCÍPULO – Compreendem ele sua história? Que pensam da aventura de sua raça?

O VELHO ASTRÔNOMO – Abre o auscultador inter-estelar.
0 jovem siriata regula, não sem dificuldade, um aparelho de mil engrenagens. Primeiro “pega”, estouvadamente, Saturno, Vênus, depois acha a Terra. Vozes a principio confusas tornam-se claras.

AS VOZES TERRESTRES
Crise sem precedentes – Catástrofe – Feliz Natal – Boas Entradas – Desta vez, é o desastre definitivo – Mas não, meu querido, nada há de definitivo – Feliz Natal – Boas Entradas – Estou arruinado – Que leva aí? – Alguns presentes para as crianças – Feliz Natal – Boas Entradas -.

O DISCÍPULO – Como podem eles misturar assim votos festivos e lamentações?

O VELHO ASTRÔNOMO – Não têm razão? Não sabes tu mesmo que esse hemisfério, atualmente velado pela bruma e a neve, cobrir-se-á com as flores viçosas da primavera dentro de três ou quatro meses? A árvore negra e contorcida estará então como um ramalhete rosa ou branco, a relva viridente sairá da terra nua e a ordem da desordem. Assim marcha o mundo.

O DISCÍPULO – Mundo estranho e cruel.

O VELHO ASTRÔNOMO – Mas que não é destituído de beleza.

domingo, 9 de setembro de 2012

Segunda ou Terça-feira (Virginia Woolf)



Preguiçosa e indiferente, vibrando facilmente o espaço com suas asas, conhecendo seu rumo, a garça sobrevoa a igreja por baixo do céu. Branca e distante, absorta em si mesma, percorre e volta a percorrer o céu, avança e continua. Um lago? Apaguem suas margens! Uma montanha? Ah, perfeito – o sol doura-lhe as margens. Lá ele se põe. Samambaias, ou penas brancas para sempre e sempre.

Desejando a verdade, esperando-a, laboriosamente vertendo algumas palavras, para sempre desejando – (um grito ecoa para a esquerda, outro para a direita. Carros arrancam divergentes. Ônibus conglomeram-se em conflito) para sempre desejando – (com doze batidas eminentes, o relógio assegura ser meio-dia; a luz irradia tons dourados; crianças fervilham) – para sempre desejando a verdade. O domo é vermelho; moedas pendem das árvores; a fumaça arrasta-se das chaminés; ladram, berram, gritam “Vende-se ferro!” – e a verdade?

Radiando para um ponto, pés de homens e pés de mulheres, negros e incrustados a ouro – (Este tempo nublado – Açúcar? Não, obrigado – a comunidade do futuro) – a chama dardejando e enrubescendo o aposento, exceto as figuras negras com seus olhos brilhantes, enquanto fora um caminhão descarrega, Miss Fulana toma chá à escrivaninha e vidraças conservam casacos de pele.

Trêmula, leve-folha, vagueando nos cantos, soprada além das rodas, salpicada de prata, em casa ou fora de casa, colhida, dissipada, desperdiçada em tons distintos, varrida para cima, para baixo, arrancada, arruinada, amontoada – e a verdade?

Agora recolhida pela lareira, no quadrado branco de mármore. Das profundezas do marfim ascendem palavras que vertem seu negrume. Caído o livro; na chama, no fumo, em momentâneas centelhas – ou agora viajando, o quadrado de mármore pendente, minaretes abaixo e mares indianos, enquanto o espaço investe azul e estrelas cintilam – verdade? Ou agora, consciente da realidade?

Preguiçosa e indiferente, a garça retoma; o céu vela as estrelas; e então as revela.

sábado, 8 de setembro de 2012

Linhas Sobre a Cerveja (Edgar Allan Poe)


Cheio de espuma e âmbar misturados
Esvaziarei este copo novamente
Visões as mais hilariantes embarafustam
Pela alcova de meu cérebro
Pensamentos os mais curiosos fantasias as mais extravagantes
Ganham vida e se dissipam;
O que me importa o passar das horas?
Hoje estou tomando cerveja.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

E Não Sobrou Ninguém (Martin Niemöller)



Martin Niemöller (nascido em Lippstadt, 14 de janeiro de 1892 — falecido em Wiesbaden, seis de março de 1984) filho de pastor luterano, foi criado para ser fiel ao imperador e com sentimento patriótico. Após formar-se no colegial, ingressou na Marinha como soldado de carreira. Durante a Primeira Guerra Mundial, serviu como comandante de submarino, vindo a ser condecorado com a Cruz de Ferro. Após a guerra, viveu durante algum tempo em Freikorps e estudou Teologia. Em 1931, foi ordenado pastor da Igreja de Santa Ana em Dahlen, subúrbio de Berlim.

Histórias à parte, o que nos interessa mesmo é o fato de ele ter sido um dos poucos intelectuais que levantaram a voz contra o nazismo. Mesmo depois de ordenado pastor ele manteve-se fiel as suas convicções patrióticas e conservadores. Uma prova de que nem mesmo o populismo desenfreado é capaz de cooptar a todos...

Niemöller é o autor de um célebre poema “E Não Sobrou Ninguém”

"Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista. Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata. Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista. Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu. Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse."

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Caçadores de Tróia, um ótimo filme alemão.



Eu estava para assistir a este filme há tempos. Não sabia se valeria a pena. Até que resolvi assisti-lo. Para minha satisfação o filme é muito bom. Ótimo roteiro, elenco em perfeita sintonia, tudo faz de “Caçadores de Tróia” um belo filme. Vale cada minuta à frente da telinha. Não sou especialista na área, sou apenas um apreciador da sétima arte. Por isso de eu não criticar as obras, mas, em vez disso, indicá-las quando as considero interessantes.

Também não costumo elaborar sinopses. Vou deixar apenas uma resenha: Desde garotinho, Heinrich Schliemann - Heino Ferch, ótimo ator - sonha com Tróia e almeja encontrá-la algum dia. Então homem feito, Heinrich se torna um homem abastado e um talentoso arqueólogo na Prússia, iniciando uma incrível aventura em busca da lendária cidade. Em meio a sua busca Sophia - Mélanie Doutey, linda, cativante e talentosa atriz - é prometida a Heinrich, fazendo-a deixar para trás um antigo amor. Uma bela história recheada de aventuras, perigos e um belo final feliz...

Título no Brasil: Caçadores de Tróia
Título Original: Der geheimnisvolle Schatz von Troja
País de Origem: Alemanha
Gênero: Aventura
Tempo de Duração: 127 minutos
Ano de Lançamento: 2007
Estúdio/Distrib.: Ocean Filmes
Direção: Dror Zahavi

 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Os Devaneios do General (Érico Veríssimo)



Abre-se uma clareira azul no escuro céu de inverno.

O sol inunda os telhados de Jacarecanga. Um galo salta para cima da cerca do quintal, sacode a crista vermelha que fulgura, estica o pescoço e solta um cocoricó alegre. Nos quintais vizinhos outros galos respondem.

O sol! As poças d’água que as últimas chuvas deixaram no chão se enchem de jóias coruscantes. Crianças saem de suas casas e vão brincar nos rios barrentos das sarjetas. Um vento frio afugenta as nuvens para as bandas do norte e dentro de alguns instantes o céu é todo um clarão de puro azul.

O General Chicuta resolve então sair da toca. A toca é o quarto. O quarto fica na casa da neta e é o seu último reduto. Aqui na sombra ele passa as horas sozinho, esperando a morte. Poucos móveis: a cama antiga, a cômoda com papeis velhos, medalhas, relíquias, uniformes, lembranças; a cadeira de balanço, o retrato do Senador; o busto do Patriarca; duas ou três cadeiras… E recordações… Recordações dum tempo bom que passou, — patifes! — dum mundo de homens diferentes dos de hoje. — Canalhas! — duma Jacarecanga passiva e ordeira, dócil e disciplinada, que não fazia nada sem primeiro ouvir o General Chicuta Campolargo.

O general aceita o convite do sol e vai sentar-se à janela que dá para a rua. Ali está ele com a cabeça atirada para trás, apoiada no respaldo da poltrona. Seus olhinhos sujos e diluídos se fecham ofuscados pela violência da luz. E ele arqueja, porque a caminhada do quarto até a janela foi penosa, cansativa. De seu peito sai um ronco que lembra o do estertor da morte.

O general passa a mão pelo rosto murcho: mão de cadáver passeando num rosto de cadáver. Sua barbicha branca e rala esvoaça ao vento. O velho deixa cair os braços e fica imóvel como um defunto.

Os galos tornam a cantar. As crianças gritam. Um preto de cara reluzente passa alegre na rua com um cesto de laranjas à cabeça.

Animado aos poucos pela ilusão de vida que a luz quente lhe dá, o general entreabre os olhos e devaneia…

Jacarecanga! Sim senhor! Quem diria? A gente não conhece mais a terra onde nasceu… Ares de cidade. Automóveis. Rádios. Modernismos. Negro quase igual a branco. Criado tão bom como patrão. Noutro tempo todos vinham pedir a benção ao General Chicuta, intendente municipal e chefe político… A oposição comia fogo com ele.

O general sorria a um pensamento travesso. Naquele dia toda a cidade ficou alvoroçada. Tinha aparecido na “Voz de Jacarecanga” um artigo desaforado… Não trazia assinatura. Dizia assim: “A hiena sanguinária que bebeu o sangue dos revolucionários de 93 agora tripudia sobre a nossa mísera cidade desgraçada”. Era com ele, sim, não havia dúvida. (Corria por todo o Estado a sua fama de degolador.) Era com ele! Por isso Jacarecanga tinha prendido fogo ao ler o artigo. Ele quase estourou de raiva. Tremeu, bufou, enxergou vermelho. Pegou o revólver. Largou. Resmungou “Patife! Canalha!” Depois ficou mais calmo. Botou a farda de general e dirigiu-se para a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido mas covarde. Entrou de chapéu na mão, tremendo. Ficaram os dois sozinhos, frente a frente.

— Sente-se, canalha!

O Mendanha obedeceu. O general levantou-se. (Brilhavam os alamares dourados contra o pano negro do dólmã.) Tirou da gaveta da mesa a página do jornal que trazia o famoso artigo. Aproximou-se do adversário.

— Abra a boca! — ordenou.

Mendanha abriu, sem dizer palavra. O general picou a página em pedacinhos, amassou-os todos numa bola e atochou-a na boca do outro.

— Come! — gritou.

Os olhos de Mendanha estavam arregalados. O sangue lhe fugira do rosto.

— Coma! — sibilou o general.

Mendanha suplicava com o olhar. O general encostou-lhe no peito o cano do revolver e rosnou com raiva mal contida.

— Coma, pústula!

E o homem comeu.

Um avião passa roncando por cima da casa, cujas vidraças trepidam. O general tem um sobressalto desagradável. A sombra do grande pássaro se desenha lá em baixo, no chão do jardim. O general ergue o punho para o ar, numa ameaça.

— Patifes! Vagabundos, ordinários! Não têm mais o que fazer? Vão pegar no cabo duma enxada, seus canalhas. Isso não é serviço de homem macho.

Fica olhando, com olho hostil, o avião amarelo que passa voando rente aos telhados da cidade.

No seu tempo não havia daquelas engenhocas, daquelas malditas máquinas. Para que servem? Para matar gente. Para acordar quem dorme. Para gastar dinheiro. Para a guerra. Guerras covardes, as de hoje! Antigamente brigava-se em campo aberto, peito contra peito, homem contra homem. Hoje se metem os poltrões nesses “banheiros” que voam, e lá de cima se põem a atirar bombas em cima da infantaria. A guerra perdeu toda a sua dignidade.

O general remergulha no devaneio.

93… Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue. Quando se aproximava a hora do combate, ele ficava assanhado. Tinha perto de cinqüenta anos mas não se trocava por nenhum rapaz de vinte.
Por um instante, o general se revê montado no seu tordilho, teso e glorioso, a espada chispando ao sol, o pala voando ao vento… Vejam só! Agora está aqui, um caco velho, sem força nem serventia, esperando a todo instante a visita da morte. Pode entrar. Sente-se. Cale a boca!

Morte… O general vê mentalmente uma garganta aberta sangrando. Fecha os olhos e pensa naquela noite… Naquela noite que ele nunca mais esqueceu. Naquela noite que é uma recordação que o há de acompanhar decerto até o outro mundo… se houver outro mundo.

Os seus vanguardeiros voltaram contando que a força revolucionária estava dormindo desprevenida, sem sentinelas… Se fizessem um ataque rápido, ela seria apanhada de surpresa. O general deu um pulo. Chamou os oficiais. Traçou o plano. Cercariam o acampamento inimigo. Marchariam no maior silêncio e, a um sinal, cairiam sobre os “maragatos”. Ia ser uma festa! Acrescentou com energia: “Inimigo não se poupa. Ferro neles!”

Sorriu um sorriso torto de canto de boca. (Como a gente se lembra dos mínimos detalhes…) Passou o indicador da mão direita pelo próprio pescoço, no simulacro duma operação familiar… Os oficiais sorriam, compreendendo. O ataque se fez. Foi uma tempestade. Não ficou nenhum prisioneiro vivo para contar dos outros. Quando a madrugada raiou, a luz do dia novo caiu sobre duzentos homens degolados. Corvos voavam sobre o acampamento de cadáveres. O general passou por entre os destroços. Encontrou conhecidos entre os mortos, antigos camaradas. Deu com a cabeça dum prisioneiro fincada no espeto que na tarde anterior servira aos maragatos para assar churrasco. Teve um leve estremecimento. Mas uma frase soou-lhe na mente: “Inimigo não se poupa”.

O general agora recorda… Remorso? Qual! Um homem é um homem e um gato é um bicho.

Lambe os lábios gretados. Sede. Procura gritar:

— Petronilho!

A voz que sai da garganta é tão remota e apagada que parece a voz de um moribundo, vinda do fundo do tempo, dum acampamento de 93.

— Petronilho! Negro safado! Petronilho!

Começa a bater forte no chão com a ponta da bengala, frenético. A neta aparece à porta. Traz nas mãos duas agulhas vermelhas de tricô e um novelo de lã verde.
— Que é, vovô?

— Morreu a gente desta casa? Ninguém me atende. Canalhas! Onde está o Petronilho?

— Está lá fora, vovô.

— Ele não ganha pra cuidar de mim? Então? Chame ele.

— Não precisa ficar brabo, vovô. Que é que o senhor quer?

— Quero um copo d’água. Estou com sede.

— Por que não toma suco de laranja?

— Água, eu disse.

A neta suspira e sai. O general entrega-se a pensamentos amargos. Deus negou-lhe filhos homens. Deu-lhe uma única filha mulher que morreu no dia em que dava à luz uma neta. Uma neta! Por que não um neto, um macho? Agora aí está a Juventina, metida o dia inteiro com tricôs e figurinos, casada com um bacharel que fala em socialismo, na extinção dos latifúndios, em igualdade. Há seis anos nasceu-lhe um filho. Homem, até que enfim! Mas está sendo mal educado. Ensinam-lhe boas maneiras. Dão-lhe mimos. Estão a transformá-lo num maricas. Parece uma menina. Tem a pele tão delicada, tão macia, tão corada… Chiquinho… Não tem nada que lembre os Campolargos. Os Campolargos que brilharam na guerra do Paraguai, na Revolução de 1893 e que ainda defenderam o governo em 1923…

Um dia ele perguntou ao menino:

— Chiquinho, você quer ser general como o vovô?

— Não. Eu quero ser doutor como o papai.

— Canalhinha! Patifinho!

Petronilho entra, trazendo um copo de suco de laranja.

— Eu disse água! — sibila o general.

O mulato sacode os ombros.

— Mas eu digo suco de laranja.

— Eu quero água. Vá buscar água, seu cachorro!

Petronilho responde sereno:

— Não vou, general de bobagem…

O general escabuja de raiva, esgrime a bengala, procurando inutilmente atingir o criado. Agita-se todo, num tremor desesperado.

— Canalha! — cicia arquejante — Vou te mandar dar umas chicotadas!

— Suco de laranja — cantarola o mulato.

— Água! Juventina! Negro patife! Cachorro!

Petronilho sorri:

— Suco de laranja, seu sargento!

Com um grito de fera o general arremessa a bengala na direção do criado. Num movimento ágil de gato, Petronilho quebra o corpo e esquiva-se do golpe.

O general se entrega. Atira a cabeça para trás e, de braços caídos, fica todo trêmulo, com a respiração ofegante e os olhos revirados, uma baba a escorrer-lhe pelos cantos da boca mole, parda e gretada.

Petronilho sorri. Já faz três anos que assiste com gozo a esta agonia. Veio oferecer-se de propósito para cuidar do general. Pediu apenas casa, comida e roupa. Não quis mais nada. Só tinha um desejo: ver os últimos dias da fera. Porque ele sabe que foi o general Chicuta Campolargo que mandou matar o seu pai. Uma bala na cabeça, os miolos escorrendo para o chão… Só porque o mulato velho na última eleição fora o melhor cabo eleitoral da oposição. O general chamou-o a intendência. Quis esbofeteá-lo. O mulato reagiu, disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia…

Petronilho compreendeu tudo. Muito menino, pensou na vingança mas, com o correr do tempo, esqueceu. Depois a situação política da cidade melhorou. O general aos poucos foi perdendo a autoridade. Hoje os jornais já falam na “hiena que bebeu em 93 o sangue dos degolados”. Ninguém mais dá importância ao velho. chegou aos ouvidos de Petronilho a notícia de que a fera agonizava. Então ele se apresentou como enfermeiro. Agora goza, provoca, desrespeita. E fica rindo… Pede a Deus que lhe permita ver o fim, que não deve tardar. É questão de meses, de semanas, talvez até de dias… O animal passou o inverno metido na toca, conversando com os seus defuntos, gritando, dizendo desaforos para os fantasmas, dando vozes de comando: “Romper fogo! Cessar Fogo! Acampar”.

E recitando coisas esquisitas. “V. Exa. precisa de ser reeleito para glória do nosso invencível Partido”. Outras vezes olhava para o busto e berrava: “Inimigo não se poupa. Ferro neles”.

Mais sereno agora, o general estende a mão pedindo. Petronilho dá-lhe o copo de suco de laranja. O velho bebe, tremulamente. Lambendo os beiços, como se acabasse de saborear o seu prato predileto, o mulato volta para a cozinha, a pensar em novas perversidades.

O general contempla os telhados de Jacarecanga. Tudo isto já lhe pertenceu… Aqui ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus candidatos; derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar uma sova num promotor público que não lhe obedeceu à ordem de ser brando na acusação. Doutra feita correu a relho da cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de integridade de opor resistência a uma ordem sua.

Fecha os olhos e recorda a glória antiga.

Um grito de criança. O general baixa os olhos. No jardim, o bisneto brinca com os pedregulhos do chão. Seus cabelos louros estão incendiados de sol. O general contempla-o com tristeza e se perde em divagações…

Que será o mundo de amanhã, quando Chiquinho for homem feito? Mais aviões cruzarão nos céus. E terá desaparecido o último “homem” da face da terra. Só restarão idiotas efeminados, criaturas que acreditam na igualdade social, que não têm o sentido da autoridade, fracalhões que não se hão de lembrar dos feitos dos seus antepassados, nem… Oh! Não vale a pena pensar no que será amanhã o mundo dos maricas, o mundo de Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!

E, dispnéico, se entrega de novo ao devaneio, adormentado pela carícia do sol.

De repente, a criança entra de novo na sala, correndo, muito vermelho:

— Vovô! Vovô!

Traz a mão erguida e seus olhos brilham. Faz alto ao pé da poltrona do general.

— A lagartixa, vovozinho…

O general inclina a cabeça. Uma lagartixa verde se retorce na mãozinha delicada, manchada de sangue. O velho olha para o bisneto com ar interrogador. Alvorotado, o menino explica:

— Degolei a lagartixa, vovô!

No primeiro instante o general perde a voz, no choque da surpresa. Depois murmura, comovido:

— Seu patife! Seu canalha! Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu patife!

E afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de esperança nos olhos de sáurio.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

A Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras (Mark Twain)



A pedido de um amigo que me escreveu do leste, procurei o velho tagarela Simon Wheeler, para me informar sobre alguém chamado Leônidas W. Smiley. Eis o resultado: concluí que o tal Leônidas W. Smiley não existia e que o meu amigo jamais havia conhecido tal pessoa. Ele apenas imaginou uma armadilha para que o velho Wheeler se lembrasse do nome do notável Jim Smiley, prevendo então que despencaria em cima de mim longas e entediantes histórias. Se foi sua intenção, acertou.

Encontrei Simon Wheeler cochilando junto ao aquecedor da velha taverna no decadente acampamento dos mineiros de Angel. Era gordo e careca, com um sorriso desenhado no semblante tranqüilo. Acordou me dando um bom dia. Então perguntei a ele sobre Leônidas W. Smiley, um reverendo e jovem ministro evangelista, que, segundo informações, havia residido no acampamento. Acrescentei ainda, ser muito importante para mim qualquer informação sobre ele.

Simon Wheeler arrastou uma cadeira para o lado da sua e me fez sentar. Iniciou então a sua monótona narrativa. Nenhuma vez sorriu ou franziu o cenho ou alterou a voz. Falou fluentemente, sempre gentil mas sem nenhum entusiasmo ou emoção. Durante toda a narrativa falou com franqueza e coração aberto, sem deixar vazar qualquer sentido de reprovação em qualquer das histórias sobre seus amigos, demonstrando claramente um grande respeito por eles, elevando-os à condição de gênios. Por mim, deixei que contasse toda a história sem interferir em nada.

“Reverendo Leônidas W. hum, reverendo Le… – bem, tinha um por aqui que atendia pelo nome de Jim Smiley no inverno de 49, talvez na primavera de 50, não me lembro bem, mas o que me fez pensar que era um ou outro é por me lembrar que o grande canal não estava ainda terminado quando ele chegou no acampamento; mas era um homem dos mais diferentes que já vi, sempre disposto a apostar em qualquer coisa, se conseguisse alguém para apostar contra; e se ninguém estivesse contra, ele ficava a favor. O que ele queria mesmo era apostar. E o incrível era sua sorte, porque mesmo assim ele quase sempre estava ganhando; sempre na espreita, esperando aparecer um motivo para jogar, e como lhe contei, não importava muito para que lado ele estava; nas corridas de cavalos, terminava sempre cheio do dinheiro ou completamente duro. Se tivesse uma briga de cachorros, lá ia ele; de gatos, apostava; de galinhas, também! Amigo, se tivesse dois passarinhos pousados na cerca, queria apostar qual voaria primeiro. Até às reuniões evangélicas ele ia pensando em apostar no pastor Walker, por ser ele o melhor pregador da região. Se visse uma lagarta indo para algum lugar, ia querer apostar com você quanto tempo ela levaria para chegar no seu destino, e se dispunha a seguir o bicho até o México, se fosse o caso, para saber o tempo que levou para chegar. Muitos aqui conheceram o Smiley e podem contar muitas coisas sobre ele. Amigo, não fazia diferença para ele – apostava em qualquer coisa o filho da puta. Quando a mulher do pastor Walker ficou doente, parecia que ia morrer, pois ficou assim muito tempo; numa manhã, dando com o pastor, o Smiley perguntou como ela estava e ele disse que ela estava melhorando – graças ao Senhor e sua infinita misericórdia – e com a benção divina, logo estará completamente sarada. E o Smiley, disse em seguida: ‘Bem, eu arrisco dois dólares e meio como ela não vai ficar’.”

“Esse tal Smiley tinha uma égua – que os meninos apelidaram de ‘justos 15 minutos’, mas era só uma gozação, porque, você sabe, ela corria mais do que isso, – e ele costumava ganhar dinheiro com ela; bem, ela era lenta mesmo, tinha asma, diarréia, tuberculose, sei lá o que mais. Todos costumavam levar uma vantagem e ficar na frente pelo caminho, mas sempre no final da corrida a égua ficava excitada, meio desesperada, e disparava dando saltos e coices para todos os lados, levantando mais poeira do que um vendaval, e acabava sempre por passar a linha de chegada pelo menos um nariz à frente dos outros.”

“Ele tinha, também, um buldogue, pequeno, pelo qual ninguém lhe daria um centavo, parecia um vira-lata que só servia para roubar a comida dos menos avisados. Mas era só ouvir o tinir das moedas e o Smiley colocá-lo na rinha, que ele se transformava e ia direto morder as patas traseiras dos adversários e ficava agarrado ali, não mastigava, se me entende, só ficava agarrado até o dono do outro cachorro jogar a toalha, mesmo que demorasse um ano. Smiley sempre ganhou dinheiro com o cachorrinho, até o dia em que encontraram um cachorro que não tinha as pernas traseiras, amputadas por uma serra circular, e quando a briga já estava adiantada e o dinheiro casado é que se viu onde eles tinham se metido; o outro cachorro tinha tudo ao seu gosto e o cachorrinho, assustado e sem poder agir, acabou sofrendo muito com as mordidas do outro cão, que não tinha as pernas de trás. Olhou para Smiley com tristeza como a recriminá-lo por colocá-lo para lutar com um cachorro que não tinha as patas traseiras, exatamente onde sempre se agarrava tenazmente, deitou e morreu. Era um bom cachorro, Andrew Jackson era o seu nome, e ficaria famoso se tivesse vivido mais tempo, porque era gênio. Nem é preciso reforçar essa idéia, porque as lutas que fizera anteriormente demonstrava o seu talento. Sempre fico triste quando penso na última luta e como terminou.”

“Bem, Smiley tinha uns cãezinhos da raça terrier para caçar ratos, galos de briga e gatos selvagens, e tantos outros animais que você não pode imaginar o que ele não tinha para competir numa aposta. Um dia ele arranjou uma rã, levou-a para casa, disse que iria treiná-la e não fez outra coisa senão ensinar aquela rã a saltar pelo seu jardim. E pode apostar que ele ensinou. Bastava dar um toque no traseiro dela e você via aquela rã rodando pelo ar, como uma panqueca, podia vê-la dar saltos mortais, girar, e cair com as quatro patas, como um gato. Também a treinou para pegar moscas, forçando que ela praticasse com tal exagero que pegava as moscas à distância, com a maior facilidade. Smiley insistia em dizer que se podia ensinar qualquer coisa para uma rã que ela aprenderia e eu acredito nisso. Meu amigo, eu vi ele colocar Daniel Webster no chão – Daniel Webster era o nome da rã – e atiçar: ‘Moscas, Daniel, moscas!’, e no mesmo instante, mal dava para ver, ela já tinha pulado para cima do balcão, engolido a mosca, e voltado para a sua posição, já coçando a cabeça com uma das patas traseiras, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo para uma rã fazer. Em lugar nenhum você podia encontrar uma rã tão simples e modesta, apesar do seu talento. Saltar num terreno plano, então, ia mais longe do que qualquer outro animal da sua espécie. Smiley apostaria todo seu dinheiro no salto da sua rã. Ele tinha muito orgulho da sua rã, e podia mesmo ter porque pessoas que haviam viajado pelo mundo estavam de acordo que jamais haviam visto outra igual.”

“Bem, Smiley deixava a rã numa pequena gaiola, onde, de quando em vez, levava à cidade para apostar. Certo dia, um sujeito – desconhecido no acampamento – viu Smiley levando a gaiola e perguntou:

“‘O que leva aí nessa gaiola?’”

“Smiley respondeu, fingindo indiferença: ‘Podia ser um periquito ou um canário, mas não é não… é uma rã’.”

“O estranho pegou a gaiola, examinou-a com cuidado de um lado ao outro e falou: ‘Está certo, parece que é. E para que serve?’”

“‘Bem’, disse Smiley, calmamente. ‘Ela é muito boa em saltos – salta mais alto do que qualquer outra rã no Condado de Calaveras’.”

“O estranho pegou a gaiola de novo e examinou a rã novamente, depois a devolveu para Smiley, com expressão de dúvida: ‘Pelo que vejo essa rã parece igual a todas as rãs’.”

“‘Talvez você não veja,’ disse Smiley. ‘Talvez você entenda de rã, talvez não; talvez até você seja um especialista, talvez um amador. De qualquer jeito eu tenho a minha opinião e estou disposto a bancar 40 dólares que ela é capaz de saltar mais alto do que qualquer outra rã no condado de Calaveras’.”

“O estranho pensou a respeito e disse, com tristeza: ‘Bem, não sou daqui e não tenho uma rã, senão eu apostava’.

“Então Smiley propôs: ‘Tudo bem, tudo bem, você segura minha gaiola que vou arranjar uma rã para você.’ Na hora o estranho casou os seus 40 dólares e ficou esperando por Smiley.”

“Sentado ali um bom tempo, o estranho começou a matutar consigo mesmo e resolveu aproveitar a chance que lhe era oferecida. Sacou a rã da gaiola apertando-a até que abrisse a boca, então recolheu à mão-cheia um punhado de chumbo de caça que enfiou pela boca adentro da rã. Em seguida colocou o animal no chão, que ali ficou estático. Enquanto isso Smiley procurava junto ao brejo uma rã, para que o estranho pudesse apostar. Finalmente conseguiu, levou-a ao estranho, dizendo: ‘Agora, se você está pronto, coloque a sua rã junto ao Daniel, com as patas alinhadas que eu vou dar o sinal. E disse: ‘Um… dois… e… já!’ Cada apostador deu o seu toque por trás da sua rã, mas, enquanto a rã do brejo dava um salto para valer, Daniel apenas levantou os ombros – assim como fazem os franceses – sem conseguir se mover. Ficou plantado como uma igreja; era como se estivesse ancorado. Isso deixou Smiley intrigado e aborrecido, mas não podia imaginar o que estava acontecendo, é claro.”

“O estranho pegou o dinheiro e foi embora feliz, fazendo um sinal de positivo com o polegar. Mais adiante se voltou: ‘Bem’ – repetiu ele. ‘Não vejo nada nessa rã que a faça melhor que as outras’.”

“Smiley coçou a cabeça, procurando uma explicação para o acontecido, olhando Daniel e resmungou: ‘Eu me pergunto o que fez esse animal desistir. Que será que deu nela? O certo é que ela realmente está com um aspecto diferente, parecendo um saco de batatas’. Quando levantou Daniel logo percebeu o excesso de peso: ‘Opa, ela deve estar pesando mais de 5 libras!’ – exclamou, enquanto virava a rã de cabeça para baixo, e viu ela arrotar espalhando um bom punhado de chumbo de caça. Entendendo o que havia acontecido, ele partiu atrás do estranho disposto a tudo, mas não conseguiu encontrá-lo…”

Nesse momento do relato, Simon Wheeler ouviu alguém chamar seu nome lá de fora e se levantou para ver do que se tratava. Afastou-se dizendo: “Oh, amigo, fique onde está que volto num segundo.”

Mas vocês me perdoem, porque achei que as histórias que Simon me contava desse Jim Smiley nada tinha a ver com o reverendo Leônidas W. Smiley, nem me traria informações sobre ele, por isso me levantei para sair.

Na porta, Wheeler, o falante, voltava e me segurou pelo casaco, querendo continuar a contar os casos:

“Bem, esse tal Smiley tinha uma vaca caolha e sem rabo… só um coto, como uma banana…”

Mas aleguei falta de tempo, para não dizer de vontade, e não esperei para ouvir a respeito da pobre vaca e fui embora.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Dá-me a tua Mão (Clarice Lispector)


Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

“Herança pesada”, por Fernando Henrique Cardoso



A presidenta Dilma Rousseff recebeu uma herança pesada de seu antecessor. Obviamente, ninguém é responsável pela maré negativa da economia internacional, nem ela nem o antecessor. Mas há muito mais do que só o infortúnio dos ciclos do capitalismo.

Comecemos pelo mais óbvio: a crise moral. Nem bem completado um ano de governo, e lá se foram oito ministros, sete dos quais por suspeitas de corrupção. Pode-se alegar que quem nomeia ministros deve saber o que faz. Sem dúvidas, mas há circunstâncias. No entanto, como o antecessor jogou papel eleitoral decisivo, seria difícil recusar de plano seus afilhados. Suspeitas, antes de se materializarem em indícios, são frágeis diante da obsessão por formar maiorias hegemônicas, enfermidade petista incurável.

Mas não foi só isso: o mensalão é outra dor de cabeça. De tal desvio de conduta a presidente passou longe e continua se distanciando. Mas seu partido não tem jeito. Invoca a prática de um delito para encobertar outro: o dinheiro desviado seria “apenas” para o caixa dois eleitoral, como disse Lula em tenebrosa entrevista dada em Paris, versão recém reiterada ao The New York Times. Pouco a pouco, vai-se formando o consenso jurídico, de resto já formado na sociedade, de que desviar dinheiro é crime, tanto para caixa dois como para comprar apoio político no Congresso. Houve mesmo busca de hegemonia a peso de ouro alheio.

Mas não foi só isso que Lula deixou como herança à sucessora. Nos anos de bonança, em vez de aproveitar as taxas razoáveis de crescimento para tentar aumentar a poupança pública e investir no que é necessário para dar continuidade ao crescimento produtivo, preferiu governar ao sabor da popularidade. Aumentou os salários e expandiu o crédito, medidas que, se acompanhadas de outras, seriam positivas. Deixou de lado as reformas politicamente custosas: não enfrentou as questões regulatórias para acelerar as parcerias público-privadas e retomar as concessões de certos serviços públicos. A despeito da abundância de recursos fiscais, deixou de racionalizar as práticas tributárias, num momento em que a eliminação de impostos poderia se fazer sem consequências negativas: a oposição conseguiu suprimir a CPMF, cortando R$ 50 bilhões de impostos, e a derrama continuou impávida.

É longa a lista do que faltou fazer quando seria mais fácil. Na questão previdenciária, o único “avanço” não se concretizou: a criação de uma previdência complementar para os funcionários públicos que viessem a ingressar depois da reforma. A medida foi aprovada, mas sua consecução dependia de lei subsequente, para regulamentar os fundos suplementares, que nunca foi aprovada. As centenas de milhares de recém-ingressados no serviço público na era lulista, continuaram a beneficiar-se da regra anterior. Foi preciso que novo passo fosse dado pelo governo atual para reduzir, no futuro, o déficit da Previdência. Que dizer, então, de modificações para flexibilizar a legislação trabalhista e incentivar o emprego formal? A proposta enviada pelo meu governo, com esse objetivo, embora assegurando todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição foi retirada do Senado pelo governo Lula em 2003. Agora é o próprio Sindicato Metalúrgico de São Bernardo do Campo que pede a mesma coisa…

Mas o “hegemonismo” e a popularidade à custa do futuro forçaram outro caminho: o dos “projetos de impacto” como certos períodos do autoritarismo militar tanto prezaram. Projetos que não saem do papel ou, quando saem, custam caríssimo ao Tesouro e têm utilidade relativa. O exemplo clássico foi a formação a fórceps de estaleiros nacionais para produzirem navios tanque para a Petrobras (pagos, naturalmente pelos contribuintes, seja através do BNDES, seja pelos altos preços desembolsados pela Petrobras). Depois do lançamento ao mar do primeiro navio, com fanfarras e discursos presidenciais, passaram-se meses para descobrir-se que o custo não fez jus a tanta louvação. Que dizer dos atrasos da transposição do São Francisco ou da Transnordestina, ou ainda da fábrica de diesel à base de mamona? Tudo relegado aos restos a pagar do esquecimento.

O que mais pesa como herança é a desorientação da política energética. Calemos sobre as usinas movidas “a fio d”água”, cuja eletricidade para viabilizar o empreendimento terá de ser vendida como se a produção fosse firme o ano inteiro e não sazonal. Foi preciso substituir o companheiro que dirigia a Petrobrás para que o país descobrisse o que o mercado já sabia, havendo, reduzido quase pela metade o valor da empresa. O custo da refinaria de Pernambuco será dez vezes maior do que previsto; há mais três refinarias prometidas que deverão ser postergadas ad infinitum.O preço da gasolina, controlado pelo governo, não é compatível com os esforços de capitalização da Petrobrás. Como consequência de seu barateamento forçado – que ajuda a política de expansão ilimitada de carros com a coorte de congestionamentos e poluição –, a produção de etanol se desorganizou a tal ponto que estamos importando etanol de milho dos Estados Unidos!

Com isso tudo e apesar de estarmos gastando mais divisas do que antes com a importação de óleo, o presidente Lula não se pejou em ser fotografado com as mãos lambuzadas de petróleo para proclamar a autossuficiência de produção, no exato momento em que a produtividade da extração se reduzia. No rosário de desatinos, os poços secos, ocorrência normal neste tipo de exploração, deixaram de ser lançados como prejuízo, para que o país continuasse embevecido com as riquezas do pré-sal, que só se materializarão quando a tecnologia permitir que o óleo seja extraído a preços competitivos, que poderão se tornar difíceis com as novas tecnologias de extração de gás e óleo dos americanos.

É pesada como chumbo a herança deste estilo bombástico de governar que esconde males morais e prejuízos materiais sensíveis para o futuro da nação.

Fernando Henrique Cardoso, ilustre brasileiro, é Sociólogo, ex-presidente da República e presidente de honra do PSDB. Artigo publicado no jornal “O Globo” em 02/09.

domingo, 2 de setembro de 2012

O Bilhete Premiado (Anton Tchekhov)



Ivan Dmítritch, homem remediado que vivia com a família na base de uns 1200 rublos por ano, muito satisfeito com seu destino, certa noite, depois do jantar, sentou-se no sofá e começou a ler o jornal.

- Esqueci de dar uma olhada no jornal de hoje – disse sua mulher tirando a mesa. – Dê uma espiada para ver se saiu o resultado do sorteio.

- Saiu – respondeu Ivan Dmítritch -, mas você não penhorou seu bilhete?

- Não. Paguei os juros na terça.

- Qual é o número?

- A série é 9499, bilhete 26.

- Então… Vejamos… 9499 e 26.

Ivan Dmítritch não acreditava na sorte da loteria e em outra ocasião jamais se daria ao trabalho de verificar a lista. Agora, porém, que não tinha nada para fazer e o jornal estava bem debaixo de seu nariz, percorreu com o dedo de cima para baixo Os números da série. E não é que logo de cara, corno que para zombar de sua descrença, já no alto da segunda coluna apareceu de repente, diante de seus olhos, o numero 9499! Sem conferir o número do bilhete nem verificar se tinha lido certo, deixou cair rapidamente o jornal no colo e como se alguém lhe tivesse derramado água na barriga, sentiu um friozinho agradável no fundo do estômago. Era urna sensação de coceira terrível e deliciosa ao mesmo tempo.

- Macha – disse com voz surda -, o 9499 está aqui. A mulher olhou para seu rosto surpreso, assustado, e compreendeu que o marido não estava brincando.

- 9499? – perguntou ela, empalidecendo e deixando cair na mesa a toalha dobrada.

- Sim, sim… Está, de verdade!

- É o número do bilhete?

- É mesmo! Ainda falta o número do bilhete. Mas tenha paciência… espere. Então, que tal? De qualquer modo o número de nossa série está, hem? De qualquer modo, entendeu?…

Ivan Dmítritch olhou para a mulher e sorriu num sorriso largo e apalermado como uma criança a qual tivessem mostrado alguma coisa brilhante. A mulher também sorria. Sentia o mesmo prazer que o marido por ele ter lido somente a série e não ter tido pressa em saber do número do feliz bilhete. E tão delicioso, tão angustiante consumir-se e espicaçar-se na esperança de uma felicidade possível!

- A nossa série está – disse Ivan Dmítritch depois de um longo silêncio. – Significa que existe uma possibilidade de termos ganho. Apenas uma possibilidade, mas, apesar de tudo, ela existe!

- Está bem, mas agora, olhe.

- Espere. Ainda teremos tempo a vontade para nos desiludir. Se esta na segunda coluna de cima, quer dizer que o prêmio é de 75 mil. Isso não é dinheiro, é uma força, um capital! E se de repente eu olhar para a lista e lá estiver o numero 26? Hem? Escute, e se tivermos ganho de verdade?

Os cônjuges começaram a dar risada e a olhar demoradamente um para o outro, sem falar nada. A possibilidade da ventura deixara-os obnubilados, e eles não conseguiam sequer sonhar, dizer para que precisavam daqueles 75 mil, o que comprariam, para onde iriam. Imaginavam apenas Os números 9499 e 75 mil, desenhavam-nos em sua imaginação, mas a idéia da felicidade, que estava tão próxima, parecia não lhes passar pela cabeça.

Ivan Dmítritch andou algumas vezes de um lado para outro com o jornal nas mãos e só quando a primeira impressão se acalmou é que, aos poucos, começou a sonhar.

- E se tivermos ganho? – disse. – Seria uma vida nova, uma catástrofe! O bilhete é seu, claro, mas se fosse meu, antes de mais nada, naturalmente eu compraria algum imóvel, algo como uma propriedade, no valor de, digamos, 25 mil; deixaria uns 10 mil para despesas extras: mobília nova… uma viagem… pagamento de dívidas e assim por diante. Os 40 mil restantes colocaria no banco, para render juros…

- Realmente, uma propriedade seria ótimo – disse a mulher sentando-se e deixando cair os braços no colo. – Nalgum canto, na região de Tula ou de Orlóv… Em primeiro lugar, não seria preciso alugar nenhuma casa de campo e, em segundo, não deixa de ser uma renda.

E na imaginação dele começaram a se aglomerar imagens, uma mais poética e aprazível que a outra. E em cada uma delas ele se via satisfeito, tranqüilo, saudável e chegou a sentir um calorzinho agradável, um calorzão, mesmo! Lá está ele, depois de ter comido uma sopa de legumes fria como o gelo, de barriga para cima na areia quente, na beira do rio ou no jardim mesmo, embaixo de uma tília… Faz calor… O filho e a filha rastejam perto dele, rolam na areia ou caçam algum bichinho na relva. Cochila docemente sem pensar em nada e sente com todo o corpo o que significa não ter de ir ao serviço nem hoje, nem amanhã, nem depois. E quando cansar de ficar deitado, pode ir ver cortar o feno, ou ao bosque, colher cogumelos, ou então ficar observando como os camponeses pescam os peixes com o arrastão. Ao pôr-do-sol, pega um pano, um sabonete e esgueira-se na casa de banho, onde se despe devagarzinho, passa um tempão alisando o peito nu com as palmas das mãos e finalmente cai n’água. Na água, Os peixinhos se agitam em volta das bolhas turvas de sabão e as plantas aquáticas balançam na corrente. Depois do banho, um chá com creme e rosquinhas doces… À noite, um passeio ou uma partida de uíste com os vizinhos.

- Sim, seria bom comprar uma propriedade – diz a mulher, também sonhando. Lê-se em seu rosto que está encantada com os próprios pensamentos.

Ivan Dmítritch imagina o outono chuvoso, as noites frias, o veranico. Nessa época é preciso andar um tempão pelo jardim, pela horta, pela margem do rio até sentir bem o frio e depois beber um copo cheinho de vodka junto com cogumelos salgados ou um pepino em salmoura e pronto – tomar outro trago. As crianças vêm correndo da horta, trazendo cenoura e nabo. Sente-se o cheiro fresco da terra… Depois, estirar-se no sofá e folhear uma revista qualquer, sem pressa, até que o sono chegue. Cobrir o rosto com a revista, desabotoar o colete e entregar-se…

Após o veranico o tempo é fechado, ruim. Chove dia e noite. As árvores despidas choram, o vento é úmido e frio. Os cachorros, os cavalos, as galinhas – não há quem não esteja molhado, melancólico, encolhido. Não se tem por onde passear; sair de casa, nem falar! Passa-se o dia inteiro andando de um canto para outro e olhando tristemente pelas janelas embaçadas. Que coisa enfadonha!

Ivan Dmítritch parou e olhou para a mulher.

- Sabe de uma coisa, Macha, eu iria é para o estrangeiro.

E ficou pensando como seria bom viajar para o estrangeiro, cruzar o oceano profundo e ir para algum lugar no sul da França, para a Itália… Para a Índia!

- Eu também iria para o estrangeiro correndo – disse a mulher. – Mas olhe o número do bilhete!

- Espere! Daqui a pouco…

Andou pelo quarto e continuou a pensar. E se a mulher fosse realmente para o estrangeiro? Viajar é bom sozinho, ou em companhia de mulheres despreocupadas, sem compromisso, que vivem o momento presente, e não com aquelas que ficam o tempo todo pensando e falando em crianças, suspirando, tremendo com medo de gastar um copeque que seja. Ivan Dmítritch imaginou sua mulher no vagão, cheia de embrulhos, cestas, pacotes: suspira e queixa-se que a viagem lhe deu dor de cabeça, que gastou muito dinheiro. É preciso correr na estação atrás de água quente, sanduíches, água potável. Almoçar ela não pode, custa caro…

“Tenho certeza que ela iria controlar cada copeque”, pensou ele, olhando para a mulher. “O bilhete é dela, não é meu! E pra que ela precisa ir para o estrangeiro! O que é que lhe falta ver lá de importante? Já sei. Ficará fechada o tempo todo no hotel e não me deixará desgrudar dela um só momento.”

E pela primeira vez em sua vida reparou que a mulher tinha envelhecido, ficara feia e cheirava a cozinha, enquanto ele ainda era moço, saudável, viçoso, bom para se casar uma segunda vez.

“Claro, tudo isso é bobagem, é besteira”, pensou. “Mas… para que iria ela ao estrangeiro? O que ela aproveitaria lá? Mas iria mesmo… Imagino. Para ela Nápoles ou Klin iriam ser a mesma coisa. Ficaria me atormentando e eu dependeria dela. Tenho certeza de que na hora em que recebesse o dinheiro, iria trancá-lo a sete chaves, como faz o mulherio… Iria escondê-lo de mim… Aos parentes dela tudo, mas para mim, contaria cada copeque.

Ivan Dmítritch ficou pensando na parentela. Logo que todos esses irmãozinhos, irmãzinhas, titias, titios soubessem do ganho, viriam se arrastando, bancando os mendigos, sorrindo untuosamente, bajulando. Eta gentinha sórdida! Se lhe oferecem a mão, pegam o braço. Se não lhe oferecem, amaldiçoam, rogam pragas, desejam todo tipo de desgraça.

Ivan Dmítritch lembrou-se de seus parentes e seus rostos, que ele sempre olhara com indiferença, pareciam-lhe agora odiosos, repulsivos.

“São uns canalhas”, ele pensou.

E o rosto da mulher começou também a parecer-lhe odioso, repulsivo. Em seu íntimo começou a ferver um ressentimento contra ela e ele pensou com alegria perversa: “Não entende nada de dinheiro, por isso é avarenta. Se ganhasse, mal me daria cem rublos, e o resto iria direto para o cofre”.

Já olhava agora para a mulher com ódio e não mais com um sorriso. Ela também olhava para ele com maldade e com ódio. Ela tinha seus próprios sonhos dourados, seus pianos, suas idéias e sabia perfeitamente no que estava pensando o marido. Sabia que seria o primeiro a avançar no que ela teria ganho.

“É bom sonhar por conta dos outros!”, dizia o olhar dela. “Não, você não conseguirá!”.

O marido compreendeu seu olhar: o ódio ferveu-lhe no peito e para decepcionar sua mulher e fazer-lhe mal olhou rápido na quarta página do jornal e anunciou solene:

- Série 9499, bilhete 46! Não 26!

A esperança e o ódio desapareceram ambos de repente e, no mesmo instante, Ivan Dmítritch e sua mulher acharam os aposentos escuros, pequenos e abafados, e o jantar que tinham acabado de comer pesado e insosso, e as noites longas e enfadonhas.

- Só o diabo sabe – disse Ivan Dmítritch, começando a implicar. – Por todo lado que eu pise, só há papéis, migalhas, casquinhas, sei lá. Será que nunca varreram esses quartos! Terei de ir embora de casa, o diabo que me carregue. Vou sair e me enforcar na primeira árvore.


Os políticos são o espelho da sociedade.

      O nosso problema não está no fato de o país ser unitário ou federado, de ele ser república ou monarquia, de ele ser presidenciali...